Em 2008, começou nas favelas do Rio de Janeiro o processo de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), política que, aliando à repressão ao crime a promessa de acesso das comunidades aos serviços estatais, visava, justamente, pacificar territórios ocupados por facções criminosas. Nesse contexto, Luana Motta morou na Cidade de Deus em 2014, durante quatro meses, ao longo dos quais acompanhou a rotina de projetos sociais desenvolvidos por policiais cedidos pela UPP local - que a pesquisadora chama de policiais-professores - no Centro de Referência da Juventude (CRJ) da comunidade.
Os resultados da pesquisa, realizada durante o curso de doutorado de Motta - hoje docente no Departamento de Sociologia da UFSCar - no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade, estão no livro "Fazer estado, produzir ordem - gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável", recém-lançado pela Editora da UFSCar (EdUFSCar).
O conflito urbano no Brasil, ao longo das últimas décadas, se afastou da ideia de integração dos pobres pelo acesso a direitos, sendo compreendido cada vez mais como necessidade de contenção da violência, associada nessa compreensão à pobreza e às margens das cidades. A questão da violência, nessa nova configuração, perde seu caráter estrutural, vinculado às desigualdades, às injustiças e à precariedade das ações estatais. Passa a ser "um problema da periferia e que dela emanaria devido às escolhas dos indivíduos que lá habitam", como registra Luana Motta em sua obra, inserida em um conjunto de esforços para compreender essa nova configuração.
Na sua pesquisa de campo, Motta observou as interações entre os policiais-professores e seus alunos em cursos de artes marciais, instrumentos musicais e Inglês, dentre outros. A análise evidenciou a ideia de "juventude vulnerável" como central para o que Motta chama de gestão da pobreza e, assim, do conflito urbano, amparada em Michel Foucault. Também sintetizou a classificação dessa juventude em um espectro que vai de "Tá no sangue" (o crime) a "Nem precisa de projeto" (para ficar longe do crime). No livro, a autora mostra como essa classificação é fundamental na orientação tanto da relação cotidiana entre policiais-professores e seus alunos, quanto de políticas públicas direcionadas a diferentes perfis.
Ao longo de 152 páginas e cinco capítulos principais, Luana Motta mescla seus registros e reflexões durante a realização da pesquisa - alguns em tom bastante pessoal - com transcrições das falas dos policiais-professores e, só então, com referenciais teóricos e debates conceituais, tornando a leitura não apenas possível, mas também interessante e instrutiva para qualquer pessoa interessada na temática e no contexto abordado.
De Foucault, além do conceito de gestão, Motta adota a compreensão de que o estado não é monolítico, um lugar elevado de onde emanaria todo o poder, mas sim múltiplo, diverso, com uma série de agentes e agendas desde o topo da hierarquia até a ponta. "Olhando para a ponta, você acrescenta nuances, mais camadas de complexidade na compreensão do estado e suas políticas", situa a pesquisadora. "A pesquisa me mostrou que a formação na instituição Polícia Militar é muito presente, com uma série de pressupostos da polícia que disciplina, reprime, que vê o pobre como potencialmente violento. Mas, ao mesmo tempo, identifiquei também uma série de vínculos e de afetos que não poderíamos supor a partir da representação que temos sobre a PM, e esses vínculos são muito importantes na implementação das políticas públicas", registra.
No primeiro capítulo, a autora, ao narrar sua chegada à Cidade de Deus, desenha um mapa do território que mostra diferentes realidades em espaços distintos dentro da própria comunidade, com a localização do CRJ influenciando quais jovens frequentam os projetos. A pesquisadora, ao residir na área mais pobre, com menos infraestrutura e mais estigmatizada da comunidade, constatou desconhecimento ou desinteresse pelos cursos justamente entre os jovens que seriam o público prioritário da iniciativa.
Em seguida, Motta apresenta uma série de aspectos vinculados às bases da autoridade dos policiais-professores. Aqui, além do "estar lá", ou seja, de um discurso que legitima o conhecimento sobre aquela realidade pela presença onde ninguém mais quer estar, dois outros aspectos centrais que emergem são a "origem comum" entre policiais-professores e os jovens atendidos - pobres atendendo pobres - e, junto a ela, a positivação da superação da adversidade, ou seja, a apresentação da trajetória desses policiais e, também, de jovens que estudam, trabalham, como tipos ideais, modelos que embasam a concepção de que uma trajetória de sucesso depende, sobretudo, das escolhas de cada um.
No terceiro capítulo, o foco vai para a classificação dos jovens em diferentes categorias, relacionada à busca de compreensão de uma realidade complexa e, assim, possibilidade de intervenção. "Eles [os policiais-professores] me diziam que precisavam saber como lidar com cada um dos jovens", relata Motta. "Um dos aspectos envolvidos nessa classificação, pensando políticas públicas em geral, é a escassez. Se os recursos são poucos, preciso decidir a quem destinar", registra. "Os perfis, neste contexto específico, em que os pobres são vistos como potenciais agentes da violência, são compreendidos como uma forma de direcionar políticas e ações adequadas para prevenir que a pobreza se transforme em violência", complementa.
Assim, a partir dessa categorização, para o jovem visto como aquele em que o crime "tá no sangue", a única solução vislumbrada é, como explica a pesquisadora, a política pública de repressão violenta. Para aqueles que se entende dispostos a seguir o caminho "correto", os projetos sociais seriam uma saída. Associada à ideia de juventude vulnerável, detalhada no quarto capítulo, a categorização é analisada criticamente pela autora no livro. "Quando se cria essa gradação, entende-se que, quanto mais vulnerável, maior o risco do jovem se tornar agente da violência. O pressuposto é que todos aqueles jovens representam um risco à sociedade", resume Motta. "Por isso eu apresento a juventude vulnerável como categoria operativa de uma forma de fazer gestão que pressupõe o tempo todo esse risco, do qual é preciso defender a sociedade", expõe.
A compreensão de que a violência deriva, sobretudo, de escolhas individuais, da família e da comunidade - e, assim, não de falhas ou da ausência de políticas públicas - volta ao foco no último capítulo, em que a autora aborda como policiais-professores justificam o fracasso dos projetos, que aparece, por exemplo, no alto índice de evasão dos cursos, bem como, de modo mais abrangente, na escalada da violência no Rio de Janeiro.
Em suas notas finais, Luana Motta dá pistas dos caminhos pelos quais sua pesquisa nos ajuda a entender o momento atual e um projeto político marcado, dentre outros aspectos, pela presença policial em diferentes instituições e espaços da sociedade. Um projeto autoritário de poder "que se estende em várias ditaduras e que era germe localizado nas UPPs, em 2014, quando a autora foi viver na Cidade de Deus. Nos anos que se seguiram, esse privatismo político, militarista e policial, guerreiro e empreendedor, expandiu-se de modo centrípeto e chegou ao governo federal, mudando os rumos do país na década de agora acaba", como enfatiza na apresentação do livro Gabriel Feltran.
O lançamento de "Fazer estado, produzir ordem - gestão do conflito urbano em projetos sociais para a juventude vulnerável" acontece na próxima quarta-feira (1/9), das 18 às 19 horas, em edição do projeto "EdUFSCar no Ar", com a participação de Motta e Feltran. A mediação será da jornalista Mariana Pezzo, com transmissão nos perfis UFSCar Oficial e EdUFSCar no Facebook e no canal UFSCar Oficial no YouTube.
A obra já está a venda no site da EdUFSCar, com 30% de desconto até o dia 2 de setembro. O livro é o sexto volume da Coleção Marginália de Estudos Urbanos, organizada pelo NaMargem - Núcleo de Pesquisas Urbanas, sediado na UFSCar.